quarta-feira, 30 de junho de 2010

Carta a Pilar

Carta a Pilar

Só isso se guarda: o amor e as palavras.

Cariño. Na hora da morte a língua some-se-nos para falar aos vivos mais amados por aquele que acaba de morrer. Ao lado do corpo de José contavas que uma amiga te dissera: "Faltam-me as palavras: Saramago levou-mas todas." A mim sobrou-me uma palavra da tua língua: cariño. Em português esta palavra não é um vocativo, uma declaração de presença - é um sentimento abstrato, uma espécie de amor de segunda, um pedido de desculpas por não ser mais do que isso. Exageramos nos sentimentos fracos e nas desculpas, deste lado da Ibéria. Nisso, o teu José era muito espanhol, mesmo antes de te conhecer. O amor começa sempre antes.

A televisão, que desdenha a literatura, convocou um desfile de escritores para falar de Saramago. Disseram-se coisas belas e verdadeiras: que este escritor recuperou o barroco do Padre António Vieira de uma forma moderna, em alegorias transbordantes de imaginação, instigando o desassossego do pensamento. Mas estas coisas belas eram sempre interrompidas pela pequena história da politiquice e da beatice: o subsecretário que entendeu vetar um livro do Escritor para um prémio, escandalizado com o seu Cristo demasiado humano. Que interessa a subpessoa diante da grandeza da obra? Que interessa a aflição das hierarquias do poder terreno da Igreja - penoso, vergonhoso, o texto do jornal oficial do Vaticano sobre o Nobel português, nesta hora que pedia respeito e compaixão - diante do entusiasmo divino com que milhares de católicos leram "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" e "Caim"? Que interessa a mesquinhice humana na hora da morte do criador de "Ensaio Sobre a Cegueira"? Que importa o lugar onde hão-de ficar as cinzas? Os grandes escritores não se desfazem em cinzas, é isso que os pequenos poderes não lhes perdoam: o facto de serem imortais, e de continuarem a apontar-lhes o dedo e a desmanchar-lhes as poses, página a página, palavra a palavra.

José Saramago não tinha medo das palavras. Foi através delas que, como leitor, se fez homem, e depois - muito depois - como escritor, se fez livre. Creio que o facto de morar parte do tempo em Espanha, por amor a ti, o ajudou a ser cada vez mais livre. Mais do que isso: tenho a certeza de que o amor que viveu contigo, em ti, por ti, o tornou mais livre. Via-se nos olhos dele. Via-se que te amava com orgulho e admiração pelo teu percurso humano e jornalístico, pela solidez e autonomia da tua voz - porque tu, Pilar, nunca foste a mulher-sombra. Nem ele, honra lhe seja, alguma vez gostou de mulheres assim. Por isso as mulheres dos seus livros vivem entre nós como heroínas que nos incitam nos momentos de fraqueza - enérgicas, lúcidas, luminosas, buscadoras incansáveis da justiça e da alegria. Admiravas o escritor, correste para Lisboa ao seu encontro depois de leres essa elegia à cidade de Pessoa que é "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Olharam-se e ficaram um do outro, de imediato e para sempre. Esse vosso romance - que acenderia, de muitas maneiras e através de variados enredos, muitos livros de Saramago - tem-me servido de sol de recurso através dos variados temporais da existência. A própria biografia de Saramago, em particular o seu trajeto de escritor - tardio, lento e feliz - é uma lição e um exemplo, em tempos de pressas sôfregas e génios quinzenais.

Lembro-me desse momento fulgurante em que o Nobel foi anunciado, lá na Feira de Frankfurt - lembro-me das lágrimas de felicidade de Lídia Jorge, abraçando-me. Lembro-me de Agustina pedir lagosta e champanhe para comemorar esse Nobel - Agustina sobre a qual, como tu recordaste publicamente, Saramago escrevera páginas de louvor na "Seara Nova", nos idos de 60, quando era politicamente incorreto dizer que ela era uma escritora de génio. Lembro-me da forma como José partilhou o Nobel, dizendo-se herdeiro de uma tradição de grande Literatura e mencionando vários outros nomes de escritores de língua portuguesa seus contemporâneos que o mereceriam. Ele continuará a existir em ti, porque o amor tem o dom de permanecer debaixo da pele e no brilho dos olhos de quem o guarda. Só isso se guarda: o amor e as palavras. A coragem de os viver por inteiro. O amor e as palavras exigem coragem, cariño. Tu sempre o soubeste, como ele.

INÊS PEDROSA
Texto publicado na edição da Única de 26 de Junho de 2010

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