A Presunção da Transcendência
deus nosso senhor pensa que
um dia me rendo
implorando por minha alma
como se uma alma fosse garantida
a todas as pessoas, mesmo às mais
zangadas ou até suicidas
mas o inimigo cá dentro sabe o contrário.
põe-me calado a deixar que o tempo
passe e tira-me do corpo todas as
ilusões
deus nosso senhor pensa em mim como
um ingrato, eu ingrato. e pensa que
um dia me vou arrepender de tudo, nem
que seja às portas da morte derrotado pelo
medo ou aquela saudade não se sabe de o quê,
de não ter feito o que se devia ou querer-se
refazer o impossível
mas o inimigo cá dentro sabe o contrário.
põe-me calado a deixar que o mundo
passe e tira-me do corpo as
emoções
deus nosso senhor pensa no mundo de
modo tão diferente do meu. escusa-se de
tudo e eu atiro-me a tudo e tudo é um
precipício. gostava de ficar um pouco mais quieto,
ter menos vontade ou importar-me pouco
com o que é a vida, se a vida é tão feita de
coisas poucas
mas o inimigo cá dentro vem de igual modo
irritado comigo e mexe-se pelo meu
corpo como se o desfigurasse, de encontro aos meus
ossos, esboroando-os lentamente numa farinha que
deus nosso senhor pensa ser apenas açúcar.
Valter Hugo Mãe
"De Viva Voz, Antologia", Livro de Poesia portuguesa contemporânea
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LN
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