domingo, 18 de abril de 2010

A Presunção da Transcendência, Poema

A Presunção da Transcendência

deus nosso senhor pensa que
um dia me rendo
implorando por minha alma
como se uma alma fosse garantida
a todas as pessoas, mesmo às mais
zangadas ou até suicidas

mas o inimigo cá dentro sabe o contrário.
põe-me calado a deixar que o tempo
passe e tira-me do corpo todas as
ilusões

deus nosso senhor pensa em mim como
um ingrato, eu ingrato. e pensa que
um dia me vou arrepender de tudo, nem
que seja às portas da morte derrotado pelo
medo ou aquela saudade não se sabe de o quê,
de não ter feito o que se devia ou querer-se
refazer o impossível

mas o inimigo cá dentro sabe o contrário.
põe-me calado a deixar que o mundo
passe e tira-me do corpo as
emoções

deus nosso senhor pensa no mundo de
modo tão diferente do meu. escusa-se de
tudo e eu atiro-me a tudo e tudo é um
precipício. gostava de ficar um pouco mais quieto,
ter menos vontade ou importar-me pouco
com o que é a vida, se a vida é tão feita de
coisas poucas

mas o inimigo cá dentro vem de igual modo
irritado comigo e mexe-se pelo meu
corpo como se o desfigurasse, de encontro aos meus
ossos, esboroando-os lentamente numa farinha que
deus nosso senhor pensa ser apenas açúcar.


Valter Hugo Mãe
"De Viva Voz, Antologia", Livro de Poesia portuguesa contemporânea
Oferta no dia da Poesia do CCB

LN

Sem comentários: