sábado, 17 de abril de 2010

Ideias sobre ..., poema giro

Ideias sobre a Timidez e a Resignação

deus, os dragões e a cinderela
conversam quase sempre sobre
nós, não é que sejamos especiais, somos
os dois tão quietos e sem atributos
raros. mas deus, os dragões e a
cinderela passam as tardes no prado, ao
pé de umas quedas de água onde se
refrescam da luz intensa da eternidade, e
conversam sobre nós fazendo apostas acerca
do amor. ela abraça-me, beija-me, diz as ansiadas
mesmas coisas de sempre. e ficamos incomodados,
ainda que nos calemos sobre isso apenas
esperando que, com o tempo, se cansem. incomoda-nos
que falem sobre nós dando palpites e enviando
sinais. os passarinhos pousam nos nossos ombros, o
fogo bonito das rosas põe-se a vibrar ao
ínfimo vento, o sapato dela cai junto da areia, mesmo
antes de me indicar o seu caminho no mar. eu
preferia que nos deixassem sozinhos, até porque
somos íntimos em cada pormenor e
o amor acontece-nos com alguma vergonha. não é
vergonha, é uma timidez. fazemos debaixo dos
lençois, queremos olhar, mas não olhamos, esperamos
que se distraiam de nós, aflige-nos a ideia de
apreciarem os nossos modos, isso não é
decente. somos tão vulgares e sem nada, nem
os nossos corpos têm o que se veja de melhor vista ou
nunca visto. não poderiam, ao menos, olhar para o
outro lado quando eu e ela nos mexemos na cama com
maior necessidade. olhar para o outro lado por um
certo pudor, como se observassem o que pretendem com
um ar mais científico, se é que há ciência na
transcendência e na eternidade. não é científico, é
escrupuloso, que quero dizer. mas talvez nem seja isso que
se ajuste. é que não sei bem, não entendo o que será
razoável para os seus quotidianos, para os suas cabeças
tão cheias de tempo e experiência. eu passei tantos
anos a pensar que deus, a cinderela e os dragões
estavam extintos, sobrando só umas quantas pedras
das suas casas, uns ossos perante os quais
tivéssemos dúvidas, uma cratera de fogo como
hálito antigo guardado na terra, quem sabe existiria uma
mecha de cabelo loiro da rapariga, e nada mais de muito
fiável, como são as grandes relíquias. e por isso
foi tão grande a surpresa quando se precipitaram sobre
nós, metidos de cara nas nuvens, a despencarem cá para baixo à
procura dos nossos gestos. eu e ela não quisemos nunca
ser descrentes, mas acontece de a vida nos ter
criado a ilusão, durante tanto tempo, de que estávamos
verdadeiramente abandonados. parece-me que, sendo assim,
devemos deixar o mundo aos critérios divinos e
abdicar de sofrer pela vida. a morte, está certo, é
a terra prometida. tenho de convencer-me disto de uma vez
por todas e até no amor aprender a não sentir de mais. tenho
de mudar tudo, e escrever pela diversidade de ideias e
nunca como tenho feito porque , admito, ando a
escrever só para me queixar. e é feio, deve ser, escrever
só para me queixar

Valter Hugo Mãe

"De Viva Voz , Antologia"; Livro de poesia portuguesa contemporânea,
oferecido no dia da Poesia no CCB

LN

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