terça-feira, 5 de julho de 2011

Democracia e balas

A Democracia e as balas

São José Almeida

Há mesmo um novo conceito de política e de governação na Europa? O que é hoje a democracia?

" A expectativa é grande, a confiança parece ser imensa e há uma espécie de ingenuidade desassombrada em relação à forma como o novo Governo vai conduzir os portugueses a uma espécie de terra de leite e mel. As intenções de transformar o país em algo que o identifique e torne aceite pelos considerados melhores proclamam-se e há uma espécie de fé cega e de crença inebriante entre os apoiantes do novo poder de que agora o paraíso na terra será revelado.
Num acrítico e quase absoluto clima de fé, toma-se como viável o regresso a soluções de organização social que representam uma regressão civilizacional no que contém de entrega do dominio sobre a sociedade à economia privada e do abandono do papel neutro do Estado como regulador da vida social. E que surgem como uma regressão ao que, na construção de Estados reguladores desde o século XVIII, na Europa, é defendido por várias correntes quer da esquerda quer da direita.
Assim, embarca-se cada vez mais na lógica da privatização de sectores económicos centrais e até garantes de soberania como os transportes e a àgua. E retorna-se ao Estado assistencialista que começou a ser abandonado ainda dentro do Estado Novo pelos governos de Marcelo Caetano e que foi erradicado pello 25 de Abril. A lógica da esmola e do pobre como indivíduo diferente e menor que precisa de ajuda substitui a lógica do Estado-Providência que redistribui riqueza, colectada através de impostos, de forma igualitária e garantindo o igual tratamento de todos os cidadãos."

"O clima de fervor e convicção, que se vive no poder e nos seus apoiantes e clientelas, contrasta com a ausência de expectativas de melhoria em grande parte da população que está na iminência de ver a sua qualidade de vida e o seu poder de compra baixar ainda mais e descer de forma drástica a patamares de difícil sobrevivência. E parece certo o destino a que leva o programa de acção política e idiológica feita pela troika para obrigar Portugal a aderir e a cumprir as directivas neoliberais que orientam a União Europeia."

" A obsessão seguidista que domina o PSD, o CDS e o PS não dá sequer espaço para que ninguém se questione sobre a utilidade e o futuro que está implícito no caminho apontado pela Comissão Europeia e pelo Governo português. Não só à luz de conceitos tidos como centrais em democracia, como é o caso da justiça social. Mas também naquilo a que esta receita e estas soluções têm conduzido a Europa e o mundo ocidental em geral. E há até uma espécie de censura sobre quem ousa questionar. Como se isso pusesse em risco a soberania nacional - conceito que precisa urgentemente de redefinição."

" Será que Portugal acaba se não cumprir as imposições de Bruxelas? Será que alguém acredita mesmo que não há outro caminho, que não há alternativas, como propagandeiam os neoliberais? Será que o país se extingue se for expulso do euro? Será que o euro, tal como existe , tem futuro? Será que alguém acredita que o futuro é o presente imutável e que o curso da história acabou?"

"Estas dúvidas assolam-me não só perante a convicção de fé que transparece da opinião dominante em Portugal, mas também ao observar que, na mesma semana em que o Governo Português proclamava a sua vontade de ser bom aluno da Comissão Europeia, no Parlamento Grego o Governo da Grécia aprovava medidas draconianas de redução de qualidade de vida e de poder de compra. Impressiona-me que, em Portugal , se fale dos gregos como relapsos e como uma espécie de maus europeus, enquanto ninguém se questiona sobre a falta de solidariedade para com a Grécia e os outros países em crise por parte dos outros Estados-membros. A verdade é que os gregos sofrem há um ano na sua vida quotidiana o efeito das medidas impostas pela Comissão Europeia, as quais, pelos vistos, não levaram a grande resultado, pelo que se impõem agora mais sacrifícios à população grega, que se manifestou nas ruas e fez mais uma greve geral."

"Mas a Comissão Europeia , não haja ilusões, age de acordo com as directivas imbuídas da nova lógica política da direita dominante na Europa, que leva à sagração do lucro como princípio máximo. E esquece o interesse das pessoas que, em democracia, é suposto os governos representarem. Ou seja, esquece que , em democracia, o soberano é o povo e que este é o sistema de governo do povo (demo+kracia) . Foi por isso que a resposta que os cidadãos gregos receberam foi balas de gás."


"Olhando para a Grécia, e para o que se passa na Europa, há uma questão que não deixa de me preocupar. Há mesmo um novo conceito de política e de governação na Europa? O que é hoje a democracia? Será que a história regressou à lei do mais forte e à lei da bala?"

Público, 2 Julho 2011

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