quarta-feira, 10 de junho de 2009

Final do conto "Provas"

Mas conteve-se e perguntou num tom humilde se podia solicitar a reabilitação.
- Não sabe o que se passa?
O homem apontou para uma quantidade de cartões espalhados e meio escondidos por uma pasta de arquivo num dos extremos da mesa.
- Esses são só o da última semana. A maior parte deles rasga o cartão do Partido ou deita-o para o incinerador. Mas alguns devolvem-no. Coberto de obscenidades. Quer que lhe leia, camarada?
Não era necessário, mas não lhe escapou a ironia daquela forma de tratamento. Apesar de tudo, corou de satisfação.
- Saiba o distinto cavalheiro que para o mês que vem talvez já não haja Partido.
Ah, mas haveria - mais despojado, mais severo, mais bem armado teoricamente. A verdade não conhece circunstâncias. Tullio estava enganado. Se Deus já não acreditava em Deus, era tempo de o homem acreditar no homem. E só o Marxismo podia tornar essa crença eficaz.
Foi interrompido por um dar de ombros do funcionário. Que tirou de uma das pilhas de papel um impresso amarrotado e empurrou na direcção dele, do outro lado da mesa. Um pedido de filiação. Faria com que aquilo chegasse ao Comité Central. Mas havia semanas que este não reunia por falta de quórum. Era preciso pagar ainda uma pequena quantia para cobrir os trâmites.
Ele tinha as notas na mão. O homem contou-as e olhou-o com pouca simpatia.
- O Partido vai examinar o seu caso. Porque é isso que voçê deve ser, ouça o que lhe digo. Um caso.
Este pobre jogo de palavras parecia causar-lhe um gozo silencioso. Meneou a cabeça.
- Há-de receber notícias nossas.
Os olhos poisaram-se depois no formulário que o postulante começara a preencher.
- Mas será possível que você não leia os jornais? Não sabe o que se passa? «Pela presente solicito a minha integração no Partido Comunista.» Isso é uma coisa que já não existe, meu amigo! Já não há PCI. Basta. Finito.
Soletrando cada uma das fúnebres sílabas, passou a cunha da mão pela garganta..
- A velha prostituta está morta e enterrada. Agora o que há é o Partido da Esquerda Democrática.
Articulou com a voz rouca as novas iniciais.
- Também já não há estrela vermelha. Agora é uma árvore verde. Olhe para aqui: uma frondosa árvore verde.
Brandiu o novo logótipo na cara do Professore.
- É a este que quer aderir? Diga lá: é a este?
Era. Tão exactamente que o penitente foi incapaz de encontrar uma resposta, uma palavra para a sua sede. Não mais do que uma rápida aquiescência indicada por um movimento da cabeça, como o de um fantoche, e que passou despercebido.
O homem limpou a garganta com impaciência, escarrou para um lenço cinzento e pediu-lhe com um gesto que escrevesse a sua direcção. Em maiúsculas, por favor.
Receberia uma convocatória do comité de bairro.
- Embora só Deus saiba quando.
Deus parecia, com efeito , estar muito presente na cidade, ultimamente. Que estivesse. A verdadeira batalha com Ele ainda estava para vir.
A porta fechou-se sonoramente.
Só ao chegar ao fundo das escadas, ainda no meio do escuro, notou que não se agarrara ao corrimão. Nem por uma vez. Mas não há necessidade de o fazer quando se está a chegar a casa - é bem verdade.

Provas, George Steiner
LN

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