Leitura do mês "As vinhas da Ira" , John Steinbeck , No Blog Leitura Partilhada
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" Os senhores chegavam às terras ou, mais frequente mente, mandavam alguém por eles. Vinham em carros fechados, e apalpavam a terra ressequida com os dedos, mas algumas vezes traziam brocas grandes, que perfuravam o solo para o analisar. Os rendeiros, à porta dos seus pátios, batidos pelo sol, observavam, inquietos, a marcha dos carros através dos campos. E, por fim, os proprietários entravam nos pátios e, sentados nos seus carros, falavam para fora das janelas. Os rendeiros paravam ao lado dos carros por um momento e, depois, punham-se de cócoras a esgravatar a poeira com paus.
Nas portas abertas, as mulheres olhavam para fora e, por detrás delas, as crianças - crianças de cabelo cor de milho e de olhos muito abertos, com um pé descalço por cima do outro pé descalço, remexendo os dedos. As mulheres e as crianças observavam os homens a falar com os senhorios. Mantinham-se silenciosas.
Alguns dos senhorios eram afáveis, porque detestavam o que estavam a fazer; outros mostravam-se irritados, porque lhes repugnava serem cruéis, e ainda outros eram frios, porque de há muito tinham descoberto que se não podia ser proprietário de terras sem se ser frio. Mas todos eles se sentiam apanhados numa teia mais poderosa do que eles próprios. Alguns odiavam os algarismos que os impeliam, outros tinham medo, e outros adoravam os algarismos porque lhes serviam de refúgio para não pensarem nem sentirem. Se um banco ou uma empresa financeira era o dono da terra, o seu delegado dizia: “O Banco - ou a Companhia - precisa, quer, insiste, exige”, como se o Banco ou a Companhia fosse um monstro, com ideias e sentimentos, que os tivesse apanhado na rede. Estes não tomavam responsabilidades em nome dos bancos ou das companhias porque eram homens e escravos, ao passo que os bancos eram ao mesmo tempo máquinas e patrões. Alguns dos delegados sentiam-se um tanto orgulhosos de serem escravos de patrões tão frios e tão poderosos. Os senhorios ou os seus representantes sentavam-se nos carros e explicavam:
- Vocês sabem que a terra é pobre. Vocês já a revolveram bastante tempo, como Deus sabe.
Os rendeiros, acocorados no chão, acenavam com a cabeça, meditavam e desenhavam figuras no pó. Sim, eles sabiam, Deus sabia também. Se não fosse a poeira! Se, ao menos, eles pudessem adubar a terra, não seria tão mau.
Os senhorios continuavam a chegar a brasa à sua sardinha:
- Vocês sabem que a terra está cada vez mais pobre. Vocês sabem o que o algodão faz à terra: rouba-a, suga-lhe todo o sangue.
Os colonos acenavam com a cabeça, que sabiam, que Deus sabia. Se pudessem alternar as plantações, podiam tornar a insuflar sangue na terra.
- Sim, mas é muito tarde. E os senhorios explicavam os actos e os pensamentos do monstro, que era mais forte que eles. Um homem pode ter terra de renda, se ela lhe dá para comer e pagar impostos: assim pode tê-la.
Sim, pode tê-la até que um dia as colheitas falham e ele tem de pedir dinheiro emprestado ao banco.
- Vocês bem vêem; um banco ou uma companhia não podem viver assim, porque essas entidades não respiram ar, não comem carne. Respiram lucros; comem os juros sobre o dinheiro. Se os não obtiverem, morrem do modo por que vocês morrem: sem ar e sem carne. É uma coisa triste, mas é assim mesmo. Precisamente assim.
Os homens, agachados, erguiam os olhos para compreender. Não seria possível esperar mais algum tempo? Talvez que o próximo ano seja um bom ano. Sabe Deus se haverá muito algodão no próximo ano? E, com todas as guerras, sabe Deus o preço a que o algodão chegará. Não se fazem explosivos de algodão? E uniformes? Arranjem bastantes guerras e o algodão subirá até ao tecto. No próximo ano, talvez. Olhavam para os senhorios com ar interrogativo.
- Não podemos estar atidos a isso. O banco - o monstro - tem de recolher sempre lucros. Não pode esperar. Senão, morre. Não, os juros estão continuamente a subir. Quando o monstro pára de crescer, morre. Não pode estar sempre no mesmo tamanho.
Dedos finos começavam a tamborilar no peitoril da janela do carro e dedos calosos apertavam mais os paus que esgaravatavam nervosamente no chão. Às portas das casas batidas pelo sol, onde moravam os rendeiros, as mulheres suspiravam e mudavam os pés, de modo que o que tinha estado para baixo, estava agora para cima, com os dedos a bulir. Os cães chegavam, farejavam perto dos carros dos senhorios e mijavam sucessivamente em todos os pneumáticos. E as galinhas agachavam-se na poeira quente e sacudiam as penas para que a poeira lhes descesse até à pele. Nas pequenas pocilgas, os porcos grunhiam, pedindo qualquer coisa, remexendo os restos enlodados das lavagens.
Agachados, os homens tornavam a ferrar os olhos no chão.- Que querem os senhores que a gente faça? Não podemos tirar partilha menor da colheita; estamos quase a morrer de fome. As crianças andam sempre esfomeadas. Não temos roupas ; só farrapos. Se todos os vizinhos não estivessem na mesma, teríamos vergonha de ir ao culto.
E, por fim, os senhorios chegaram ao ponto crucial.
- O sistema de arrendamento não pode vigorar mais. Um só homem a guiar um tractor pode fazer o trabalho de doze ou catorze famílias Paguem-lhe um salário e ele toma para si toda a colheita. Temos de ver isso. É contra a nossa vontade. Mas o monstro exige-o. Não nos podemos opor a ele.
- Mas vão matar a terra com algodão.
- Bem sabemos. Temos de cultivar algodão depressa, antes que a terra morra. Depois vendemos a terra. Há centenas de famílias no Este que querem possuir um bocado de terra.
Os rendeiros olharam para os carros, alarmados.
- E, depois, o que vai suceder? Como havemos de comer?
- Vocês têm de deixar a terra. Os arados rasgarão os vossos quintais.
E agora os homens agachados ergueram-se, coléricos.
O avô havia-se apoderado da terra; tivera de matar os índios e de os expulsar. E o pai nascera ali e matara ervas ruins e cobras. Depois, viera um ano mau e ele tivera de pedir algum dinheiro emprestado.
- E nós nascemos aqui. Esses que estão ali às portas - os nossos filhos - nasceram aqui. E o pai teve de pedir dinheiro emprestado. O banco achou-se então dono da terra, e nós ficámos, mas apenas com uma pequena parte daquilo que colhíamos.
- Nós sabemos isso, tudo isso. Não somos nós, é o banco. Um banco não é um homem. E um proprietário de cinquenta mil acres também não é como um homem. É um monstro.
- Decerto - exclamaram os rendeiros - mas é a nossa terra. Medimo-la e rasgámo-la. Nela nascemos; fazemo-nos matar nela; Morremos nela. Apesar de não ser boa, mesmo assim é nossa. E isso que faz que ela seja nossa: termos nascido nela, trabalhado nela, morrido nela. Isto é que justifica o direito de propriedade e não um papel com algarismos escritos.
- Sentimos muito. Mas não somos nós. É o monstro. O banco não é como um homem.
- Sim, mas o banco só se compõe de homens.
- Não, vocês enganam-se nisso; enganam-se redondamente. O banco é alguma coisa mais do que homens. Acontece que todos os homens odeiam o que o banco faz, e todavia o banco fá-lo. O banco é alguma coisa mais do que os homens, acreditem. É o monstro. Os homens fizeram-no mas não podem controlá-lo.
Os rendeiros bramaram:
- O avô matou índios, o pai matou cobras por causa da terra. Talvez nós possamos matar os bancos; são piores do que os Índios e as cobras. Talvez nós nos disponhamos a combater para conservar a nossa terra, corno fizeram o pai e o avô.
E então chegou a vez de os senhorios ficarem zangados.
- Vocês têm de sair daqui.
- Mas a terra é nossa - vociferavam os rendeiros. - Nós...
- Não é. O banco, o monstro, é o dono. Vocês têm de sair daqui.
- Pegamos nas nossas espingardas, como o avô quando os Índios vieram. Que é que nos poderá acontecer?
- Primeiro vem o xerife e depois a tropa. Serão ladrões se teimarem em ficar; serão assassinos se matarem para ficar. O monstro não é homem, mas pode arranjar homens para fazerem o que ele quer.
- Mas, se sairmos daqui, para onde iremos? E como iremos? Estamos sem dinheiro.
- Sentimos muito - disseram os senhorios. - O banco, o dono de cinquenta mil acres, nada tem com isso. Vocês estão em terra que não é vossa. Talvez que, para lá da divisa, vocês consigam arranjar trabalho no Outono, na colheita do algodão. Talvez consigam ser socorridos como indigentes. Porque não vão para o Oeste, para a Califórnia? Há lá muito trabalho e nunca faz frio. Ali, em qualquer parte, podem estender a mão e apanhar uma laranja. Ali há sempre uma ou outra plantação onde trabalhar. Porque não hão-de vocês de ir?
E os senhorios puseram os carros em movimento e foram-se embora.
Os rendeiros agachavam-se de novo para fazerem garatujas na poeira, para pensarem, para ponderarem. Os seus rostos queimados estavam sombrios e os olhos batidos de sol coruscavam. As mulheres saíram cautelosamente das portas das casas para o pé dos homens e as crianças arrastavam-se atrás das mães, cautelosas, prontas e fugir. Os rapazes mais crescidos agachavam-se ao lado dos pais, porque isso os fazia homens. Daí a pouco, as mulheres perguntavam:
- Que é que eles querem?
E os homens olhavam para elas um instante, com uma sombra de dor nos olhos.
- Temos de sair daqui. Um tractor e um capataz. Como nas fábricas.
- Para onde vamos? - perguntavam as mulheres.
- Não sabemos. Não sabemos.
E as mulheres iam-se embora, muito de mansinho, para dentro das casas, levando as crianças â sua frente. Sabiam que um homem assim aflito e embaraçado até é capaz de se zangar com as pessoas que ama. Deixavam os homens sozinhos, a pensar e a desenhar na poeira.
Passado um bocado, o rendeiro ia dar uma vista de olhos à bomba posta há dez anos, com um manípulo em forma de pescoço de ganso e flores de ferro na boca, a um cepo onde centenas de galinhas tinham sido mortas, a um arado de mão pousado no telheiro e a uma grade suspensa por cima dele, nas vigas.
As crianças arrebanhavam-se junto das mães, nas casas.
- Que vamos fazer, mãe? Para onde vamos?
As mulheres diziam:
- Não sabemos ainda. Vão brincar. Mas não se aproximem do vosso pai. É capaz de vos bater se vocês se chegarem para o pé dele.
E as mulheres continuavam a trabalhar, mas sem perderem de vista os homens agachados na poeira - perplexos e pensativos."
Capítulo V
LN
terça-feira, 16 de junho de 2009
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