1 Bairro Alto
Foi já há alguns anos. Havia ainda vários lugares onde se podia estacionar e onde, hoje, já nem vale a pena ir. A rua inclinada do elevador da Glória, quando parava de funcionar, era um deles. O meu carro era um Fiat Punto vermelho, saudades, e devia estar estacionado numa dessas ruas . Eu devia ter alguma coisa às voltas na cabeça, devia estar com pressa para ir ter com alguém que me esperava à porta de algum bar. Já não sei bem, já não me lembro. Aquilo que recordo foi que entrei pela rua do Gingão, já não havia Gingão, atravessei-a e, quando comecei a escolher um caminho entre os corpos que enchiam a esquina de gargalhadas, teorias e fumo, senti uma mão a puxar-me o braço. Virei-me. Era Portugal. Abriu-se-me um sorriso no rosto. Portugal sorria já. Abraçámo-nos ainda sem palavras. Foi mesmo um abraço. Depois, ficámos durante um instante a olhar um para o outro, ainda com esse sorriso e esse brilho de putos. Portugal disse-me: então pá? Não era para responder. Havia tanto tempo que não nos víamos. Naquela época, acreditávamos subliminarmente que nada iria desaparecer jamais. Aquele encontro por acaso contribuia para a suposta verdade dessa teoria. Portugal deu um passo para o lado e apresentou-me as duas raparigas italianas com quem estava. Francesca e Francesca. Eu fiquei a conversar com a Francesca morena e mais baixinha. Os seus lábios tinham um sabor suave a caramelo.
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2. Norte Shopping
Por mais que tente, nunca fui capaz de chegar desde o centro do Porto até ao Norte Shopping. Dezenas de pessoas já me tentaram explicar, já me fizeram desenhos em toalhas de papel rasgadas de mesas de restaurantes, ouço na memória a prenúncia de quando dizem «circunvalação». Se estiverem mais do que um , concordam todos entre si que é muito fácil, mas nunca ninguém me conseguiu explicar. A única vez em que com facilidade ao Norte Shopping foi quando a Catarina de Penafiel , com quem costumo falar do concerto de Carcass no Porto em 94, conduziu à minha frente e só tive de segui-la. Foi exactamente nesse dia , estava a escrever-lhe uma mensagem no telemóvel para agradecer essa extrema simpatia , eram talvez umas sete horas e era talvez novembro, como agora. Na rua, tinha chovido e havia a cor dos faróis dos carros refletida no alcatrão. No centro comercial, não chovia e as famílias estavam ainda em plena actividade. A luminosidade era constante, como a temperatura, por isso, quando vi Portugal ao longe a empurrar um carro de supermercado cheio, o reconhecimento foi imediato. Caminhei na sua direcção a chamá-lo. Distraído , Portugal continuava sem olhar para mim. Quando cheguei junto dele, cumprimentou-me com uma certa timidez , como se fosse um encontro inconveniente. O meu entusiasmo esmoreceu. Portugal tinha um pullover triste de lã cinzenta. Falou-me da mulher e das filhas sem que lhe tivesse perguntado nada sobre isso.
Dissemos: pois. Dissemos : enfim. Dissemos frases que não tinham significado e que foi como se não tivessem sido ditas. Houve um momento de silêncio e Portugal estendeu-me a mão. Gostei de te ver. Fiz aquilo que se esperava de mim. Apertei-lhe a mão. Também gostei de te ver. Quando Portugal começou a andar, caminhei na direcção oposta, mas, ao fim de alguns passos , parei-me e , em silêncio, fiquei a ver Portugal a afastar-se.
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José Luis Peixoto
Livro "Abraço"; Quetzal
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012
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