Tinha ido com a Elsa. Supostamente, íamos ficar juntos e partilhar a minha pequena tenda. Eu confiava no poder da intimidade e fiquei muito decepcionado quando, uma ou duas horas após chegarmos, a Elsa conheceu o baixista de uma banda do palco secundário e desapareceu. Vi-a afastar-se, pensei em gritar o nome dela, chamá-la, mas não o fiz. Elsa era crescida e responsável pelas suas escolhas. Nessa noite , encontrei e perdi-me de diversos amigos que fui encontrando por acaso. Não era muito tarde quando procurei o caminho até à tenda, mas estava cansado. Perdi-me várias vezes no pó e na noite. Tropecei num casal de namorados, sentei-me a conversar com uns desconhecidos que me chamaram para resolver uma disputa e, por fim, cheguei à tenda. Dormi sem sonhar. De manhã, o sol. Queria continuar a dormir , mas o sol. Estendido sobre o saco-cama , transpirava. Sentia-me uma espécie de réptil, boca aberta e seca. A realidade parecia um delírio luminoso e desagradável, quente, mas era a realidade, não era delírio. Saí da tenda, uma brisa na pele, alívio. Agarrei na toalha e fui procurar os chuveiros. Na fila, cercado de despenteados, fiquei adormecido, dormente. E comecei a reconhecê-lo pelo cheiro. Despertei os sentidos para comprovar. Na fila, à minha frente, estava Portugal. Quando lhe toquei no ombro e me viu, disse: eeeeeeee. E abraçámo-nos em tronco nu. Riscámos a pele um do outro com o pó que estava colado e endurecido pelo ar da manhã. Portugal disse: então, pá? Encolhi os ombros e sorri. Nos chuveiros, ficámos ao lado um do outro. Portugal pôs-me um bocado de pasta de dentes no dedo porque me tinha esquecido da escova. Lavadinhos, fomos à tenda de Portugal. Era garrida, vermelha e verde. Um amigo de Portugal tinha ido a Amesterdão e fomos fazer-lhe companhia. Rimo-nos durante toda a tarde com ele. À noite, também nos rimos. Vimos o dia nascer ao som de techno minimal. Sentiamos o ritmo no estômago. Com a voz arrastada e as pálpebras pesadas sobre os olhos, Portugal dizia-me que estava apaixonado por uma rapariga chamada Luísa, que pouco lhe ligava. Enquanto isso, eu olhava para longe e pensava em algodão-doce.
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5. Facebook
Eu tinha perfil no facebook há dois ou três meses. Tinha sido o Alvim a dizer-me que precisava de entrar para o facebook, que não podia passar mais um dia sem criar um perfil no facebook. Já se sabe que o Alvim exagera. Um fósforo é um incendio, um sopro é um ciclone. Mas, com a autoridade de x milhares de amigos, convenceu-me. Fui recebendo os pedidos de amizade com calma e curiosidade. Colegas da escola primária que agora tinham filhos, viviam nos arredores de Londres e me escreviam com erros ortográficos; alunas de escolas secundárias que me enviavam «lol», «bjs» e mensagens a dizer que o mundo ia acabar; mulheres, mulheres; personagens estranhas inventadas por rapazes de catorze ou quinze anos; homens que publicavam livros de poesia com títulos onde entravam as palavras «alma» ou «momentos», reticências.
Foi no meio desses pedidos de amizade que recebi um de Portugal. Não o reconheci logo. Tinha uma fotografia que apenas lhe mostrava o tronco: calças de ganga, a parte de cima das cuecas, a barriga e a mão de Portugal a segurar a t-shirt, a outra mão esticada a tirar a fotografia. Escolhendo de modo aleatório, os comentários eram do género: Tina - sexy!!!; Paty - uiui!!!; Bomba Algarve - adiciona-me no msn; Carminho - sem palavras :P ; etc. Álem disso, tinha fotos em que aparecia sentado numa mota, ou com um cachecol do Benfica, ou numa festa de aniversário num barracão, ou a saltar para dentro de uma piscina, ou a comer mexilhões. No perfil própriamente dito, Portugal tinha mentido na idade, mais jovem. No «relationship status», tinha selecionado a opção «tell you later». Nos filmes preferidos, só tinha escolhido filmes de terror. Nos amigos principais, só tinha raparigas em biquini. Nos comentários, havia uma sucessão de mulheres a desejarem-lhe votos de bom fim-de-semana. Aceitei o pedido de amizade de Portugal , claro. Até hoje, pelo facebook, não trocámos mais do que duas ou três mensagens inconsequentes.
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6. Coimbra
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7. minha cama
Aconteceu uma só vez. Decidimos nunca mais repetir porque, tanto eu como Portugal tememos que pudesse estragar a nossa amizade. No dia seguinte, quando Portugal se foi embora, troquei os lençois e esfreguei-me com toda a força no duche. Eu e Portugal não falamos sobre isso. Se, por acaso, acontece lembrar-me, sou atravessado por um arrepio.
José Luis Peixoto
"Abraço"
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