domingo, 19 de fevereiro de 2012

Sete Lugares onde já encontrei Portugal 4

3 Carrazeda de Ansiães

Tinha acordado em Valpaços. O álcool é uma droga poderosa. Tinha o carro mal estacionado, outra vez. Comecei a conduzir para sul. Era quase uma da tarde e decidi juntar o pequeno-almoço ao almoço. Apetecia-me rojões. A localidade estava serena. Quando entrei na localidade, comecei a conduzir mais devagar. Apetecia-me um restaurante com balcão de zinco, televisão ligada no telejornal, pudim molotófe, molotov, molothoff mal escrito na ementa. Quando se fala de grandes invenções, poucas pessoas se lembram de nomear os óculos de sol. Estacionei próximo de um jardim com figuras geométricas de buxo e um lago vazio ao centro. Miúdos da escola passavam por mim. Eu olhava-os através do pára-brisas e imaginava as suas ilusões. Saí do carro. Os sons do mundo eram libertados num céu enorme. Às vezes, esqueçoo-me do céu. A passagem do tempo tem peso. Depois de um momento de nostalgia, escolhi a direcção que me pareceu mais movimentada e comecei , a pé, a procurar um restaurante. Então, comecei a cruzar-me com pessoas de pele gasta, vestidas com as suas melhores roupas, homens com calças de fazenda, mulheres de lenços novos na cabeça. Traziam caixas de sapatos e galinhas debaixo dos braços. Comecei a ouvir , ainda ao longe, as vozes de ciganos ao megafone. Crianças de mãos dadas com os pais, farturas. Dobrei a esquina e havia uma feira enorme, que era como um incêndio transparente. Ciganos de pé no centro de um monte de roupa, com os tornozelos submersos por camisolas de algodão, revolvidas por mulheres, rapazes a experimentarem sapatos com calçadeiras; homens a comprarem navalhas. Estava eu a assistir a isto quando ouvi o meu nome, Zé Luis. Virei-me por instinto, sem acreditar. Era Portugal. Tinha uma boina enfiada quase até ás sobrancelhas. Pousou os sacos de plástico e apertou-me a mão com as duas mãos. O que fazes aqui?, perguntou-me, mas não quis ouvir resposta, porque me puxou pelo braço e disse: vamos beber um copo para comemorar. Entrámos numa taberna que cheirava a vinho tinto. Portugal tratou o dono da taberna pelo nome. Obrigou-me a beber dois copos de vinho, que era a última coisa que me apetecia em jejum. No meio das frases dízia «aqui, em Carrazeda de Ansiães». Não entendi tudo, mas saí com a sensação de que era feliz. Quando consegui, fui-me embora. Por outras ruas, voltei para o carro e, a conduzir, passei por um restaurante que era exactamente o que procurava. Entrei. Sentei-me e almocei. Rojões. No final, a empregada brasileira ofereceu-me vinho do Porto, recusei. Na televisão, estava uma mulher a cantar fado, pedi se podia desligar. Quando a empregada brasileira carregou no botão, por acidente, derrubou o galo de Barcelos que estava em cima da televisão e se partiu em cacos coloridos espalhados por todo o chão de mosaicos.
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José Luis Peixoto
Livro "Abraço"

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