quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Projecto de Orçamento de Estado

Texto de Rui Cardoso Martins , na Revista Pública , de Domingo, 7 Novembro

Solidário entro em recessão de palavras, poupo as minhas porque descobri um conto popular que pode, espero, salvar o país da bancarrota e a mim o resto da crónica.
O conto abre a antologia de Viale Moutinho (Pub. Europa-América, 4.ª ed.). Saiu em 1998 , quando éramos ricos e modernos e havia Expos e Euros no forno, a sabedoria antiga é sempre actual. A Enfiada de Petas (nome verdadeiro) servirá quando o governo, seja qual for, tiver de falar ua última vez com o Banco Central Europeu e o FMI , a fidalguia dos mercados.

" Era uma vez um homem que não pôde pagar a renda ao fidalgo de que era caseiro. Assim, decidiu-se a pedir que lhe fosse perdoada a dívida. Porém, o fidalgo pensou que o outro lhe estivesse a mentir e respondeu:
- Só te perdoo as medidas da renda se me disseres uma mentira do tamanho de hoje e amanhã."
O Lavrador , explica o conto, foi para casa aflito, mas tinha um filho " meio tolo" que se ofereceu para o ajudar, mesmo se não atava coisa com coisa. O meio tolo foi ter com o fidalgo e começou:
" - Saberá vossa senhoria que a colheita foi má, mas isso não tem importância. Meu pai tinha tantos cortiços de abelhas que não lhe dava com a conta. Pôs-se a contar as abelhas e deu que lhe faltava uma. Botou o machado às costas e foi procurar a abelha. Achou-a pousada no cimo dum amieiro. Vai ele, cortou o amieiro para caçar a abelha, que por sinal vinha tão carregadinha de mel que ele crestou-a, e , não tendo em que guardar o mel , meteu a mão no seio e tirou dois piolhos. Da pele destes fez dois odres, que encheu. Mas quando ia entrar em casa uma galinha comeu-lhe a abelha. Atirou à galinha com o machado para a matar, mas o machado perdeu-se entre as penas. Chegou fogo às penas, e só depois que elas arderam é que achou o olho do machado. Dali correu ao ferreiro para lho arranjar, e o ferreiro fez-lhe um anzol, com que foi ao rio apanhar peixes. Pescou uma albarda. Tornou a deitar o anzol e apanhou um burro morto já há três dias, o qual ainda pestanejava. Pôs-se a cavalo nele e foi ao ferrador para lhe dar uma mezinha e ele deu-lhe foi um remédio de sumo de fava seca, mas nisto caiu-lhe um bocado no ouvido, onde lhe nasceu tamanho faval que tem dado fava e comido favas, que ainda aí trago quinze carros delas para pagar a renda a vossa senhoria."
O fidalgo, já farto de tanta da patranha, disse:
" - Ó rapaz, tu mentes com quantos dentes tens na boca.
- Pois bem , senhor, então está a nossa renda paga . "

Sumo de fava seca, um burro morto há três dias que ainda pestaneja. Da pele de dois piolhos faremos odres de mel e perdoam-nos a dívida externa, salvos por meios tolos, não há problema.


Foi ver no dicionário Priberam na Net
Odre : Vasilha para líquidos feita da pele de certos animais
Crestar : queimar levemente; tostar
Albarda : dorso da pescada

LN

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