terça-feira, 26 de maio de 2009

George Steiner , texto "Provas"

«Mas a Igreja foi extremamente eficaz face aos impacientes. Os milenaristas , os mendicantes, os anabaptistas, os adamitas, os irmãos do Amor verdadeiro, todos os pregadores transtornados de uma Nova Jerusalém! A maneira como os bateu e os apagou da história. Não nos ficou um único texto dos cátaros, que ensinavam a perfeição aqui e agora. Não houve nada que Roma temesse tanto como a impaciência. O reino dele não é deste mundo. Terá existido alguma vez outro manifesto político mais hábil? Diga-me lá , Professore
Os dois transeuntes descobriram-se a olhar um para o outro e estavam muito próximos.
- Não foram só vocês , os socialistas, que foram impacientes. Alguns de nós, mio caro, também levámos a impaciência até à perfeita loucura. Durante muito tempo. Mas que utilidade terrena teve isso?
O padre Carlo hesitara na palavra e repetiu-a depois de um breve riso sufocado.
- Terrena. É esse o fundo do problema, não é verdade? Que utilidade teve isso, aqui na Terra? Que impaciência a de Jesus no seu sepulcro! Três dias podem ser muito tempo. Uma pequena eternidade. Para nós foi mais tempo ainda.
Tinham saído do Corso. Sem darem por isso, inflectiram na direcção do rio.
- Muito mais.
... Sentiram o cheiro do rio. Alcatrão e manchas de gasóleo.
- Eu sei que foi a vocês que fomos buscar essa impaciência, Carlo. Mas não foram vocês os primeiros. A fome é muito mais antiga. Moisés já conheceu o mesmo furor. Foram dele os mandamentos de justiça, e também as interdições. Essas listas inumeráveis das coisas sem as quais devemos passar. Moisés sabia que não poderia entrar na Terra Prometida. Que ela seria demasiado pequena para o seu furor.
« - Leu o profeta Amós, reverendissime? Hoje são os comunistas os únicos que lêem a Bíblia. Amós estava louco de fúria. Perante a cupidez que se ostenta no comércio das cidades, perante os olhos vazios das crianças que mendigam. Toda a nossa impaciência posterior é para mim como que um eco da voz dele. Ele sabia. Conhecia o mundo onde as espigas são queimadas ou envenenadas com raticida para evitar que os preços desçam nas bolsas de valores, e onde se vendem crianças nas ruas da noite ou se põem crianças a trabalhar turnos de catorze horas seguidas em fábricas de tapetes ou oficinas de pechisbeque, até que elas ceguem ou se tornem tuberculosas. Amós tinha visto tudo. Escutara a risada divertida do dinheiro e pisara o seu vómito. E Jesus também, depois dele, é verdade. 'Um tempo virá que os homens trocarão amor por amor, justiça por justiça'. E não lucro por lucro. Foi um evangelista? Foi S. Francisco ou Madre Teresa? Diga-me lá, padre Carlo, quem foi que fez esta profecia? Foi Marx. Karl Marx. Em 1844. Num texto que escrevia para si próprio. Transpondo para o papel a sua impaciência. Nem estratégia, nem análise, nem polémica. Pura e simples profecia, promessa. De um homem furioso até aos pelos da barba.»
Provas , George Steiner

LN

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