- ... Mas o grande erro , a sobrestimação do homem que é a fonte desse erro, é a proposta por si só mais nobre do espírito humano ao longo de toda a nossa história atroz. Para mim, e para muitos antes de mim, isso compensou os nossos fracassos. Fez dessa suja embriaguez que aí vemos alguma coisa sem limites. Qualquer mendigo é um príncipe da possibilidade.
O padre Carlo saudou esta última frase.
- Vejo que voçê domina a dialéctica, meu velho amigo. À sua saúde!
A Strega desceu pela garganta como uma chama morena.
- O Capitalismo nunca cometeu o mesmo erro. Está a compreender? O mercado livre pega no homem médio ao seu nível inferior. Inferior é o termo. Investe na sua cupidez animal. Conta com o seu egoísmo e com os seus interesses mesquinhos. Estimula os seus apetites pelos bens e pelo conforto, os brinquedos mecânicos e as férias ao sol. Faz-lhe festas na barriga para o levar a espojar-se e a pedir mais. É assim que alimenta o consumismo. O capitalismo não deixou o homem como o encontrou: diminuiu-o. Transformámo-nos numa vara ávida de prazeres que grunhe diante da manjedoura. O segundo automóvel. Um frigorifico maior. Estamos realmente possuídos , mais possuídos do que todos os extraviados e endemoinhados dos vossos manuais de bruxaria. Possuídos pela ânsia de possuir. Ansiando coisas desnecessárias, estúpidas. Até aos extremos da selvajaria e do estupor. É assim , padre Carlo, sei-o agora... Uma espécie de estupor ou de pasmo bestiais. Diante da televisão. Leu o que se descobriu das crianças americanas que têm hoje menos de cinco anos? Vinte e sete horas por semana diante do ecrã.
Retirei a foto do Site Olhares: foto de Francisco Fadista
Indicou com um gesto o calendário da parede do café.
- Mil e quinhentos milhões de telespectadores para o Mundial de Futebol. Que é a sua aspirina sacramental; comparada com a televisão? Comparada com a maneira como a publicidade embala os sonhos do homem? Fazemos amor copiando as imagens da televisão. Masturbamo-nos ao ritmo da cassete de vídeo. É esse o verdadeiro génio do capitalismo: canalizar os sonhos humanos e marcar-lhes o preço numa etiqueta. Nunca nos valorizar acima da nossa mediocridade. Senhoras e senhores: o elevador está à espera. Vamos subir juntos. Até a uma loção de bronzear melhor, um cortador de relva mais rápido, a arca frigorífica dos nossos sonhos, e a aparelhagem estéreo e o telefone branco ao lado do assento da sanita. Espere e vai ver : O Santo Graal da pornografia por cabo está a chegar. Olhe: aí tem a terra prometida, a Disneylândia para toda a gente. E, Carlo mio, até deuses há, no supermercado celestial. A Madonna, com os seus collants de lantejoulas. E o Maradona, o da mão de Deus. Já reparou alguma vez que estes dois nomes...?
"Provas", George Steiner
LN
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