quarta-feira, 29 de julho de 2009

crónica de Alexandra Lucas Coelho

O homem com três mil anos (II)

A crónica anterior ficou no momento em que André Azoulay disse em Lisboa:
- Enquanto judeu árabo-berbere, tenho três mil anos.
Foi isto no segundo sábado de julho , com meia cidade na praia e uma sala do CCB lotada com gente do Cambodja à Somália, de Taiwan ao Togo. Membros do governo e de organizações não-governamentais, académicos e refugiados políticos, o presidente da Gulbenkian na plateia e Amin Maalouf na mesa.
Azoulay nasceu em Essaouira, formoso porto marroquino onde os portugueses deixaram uns canhões e se come peixe grelhado mesmo à beira dos barcos. A milenar comunidade judaica de Marrocos é a única que, tendo passado de trezentas mil pessoas para três mil, continua viva e interactiva em terra islâmica (na ilha tunisina de Djerba há um núcleo judeu, mas isolado, auto-suficiente). E em Essaouira, judeus e muçulmanos viveram mano-a-mano, quase iguais em número.
- Pertenço a esta grande tribo árabo-berbere - reforçou Azoulay. E passou ao discurso de Obama no Cairo.
- O presidente dos EUA teve as palavras que esperámos desde sempre. A forma como falou de cada um de nós como indivíduos , com palavras verdadeiras e sem precedentes, exprimia respeito. Era um convite a que cada um revisse a sua agenda. Estávamos numa espécie de abismo, no Choque de Civilizações, na impossibilidade de avançar numa direcção. Essa teoria poluiu os espíritos. Obama anunciou o fim de um ciclo. Permite-nos pensar num futuro de síntese, de destino comum. É um ponto de viragem na história. Mudará as coisas no nosso mundo.
Com ou sem auscultadores para a tradução do francês, toda a plateia era um silêncio à escuta.
- Estávamos numa dúvida sangrenta nas ruas de Londres, Madrid ou Paris. Foi o tempo da regressão colectiva, do arcaísmo. Fomos todos espectadores dessa regressão. O que Obama disse, disse-o para cada um. É uma oportunidade histórica para a Europa, que não pode ser espectadora, tem que ser responsável por alargar a brecha aberta por Obama. Há milhares de árabes europeus e isso é uma riqueza para a Europa. Paridade é o conhecimento da música, da linguagem, da literatura. Uma síntese de conhecimento e de curiosidade reconstruída. Eu, árabe em Casablanca, parto à reconquista da razão, deste consenso que nos viu nascer, o Mediterrâneo que nos deu as chaves: liberdade, humanismo, criatividade sem paralelo na história. Chegou a altura de voltar.
Com prioridade para o "conflito mais longo e irracional, que ilustra a derrota de toda a comunidade das nações".
- Pois como poderá existir o resto sem a Palestina?
E esse regresso à razão, crê Azoulay, pode inspirar-se no que a memória de Marrocos exprime, segundo a "memória feliz" dos seus judeus.
Se virem bem, é já ali , "a uma hora de Lisboa".

Alexandra Lucas Coelho
Viagens com bolso, jornal Público, 26 julho 2009

Também sobre a mesma conferência no Expresso
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LN

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