quinta-feira, 19 de março de 2009

Poetas do Porto

Poemas retirados do Blog WebClub da Wind , (maio 2007)

O POEMA

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

HÁ DIAS

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

Eugénio de Andrade

As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?

Sophia de Mello Breyner Andresen

De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.

Eugénio de Andrade

MUSA

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu subito falar
Que me foge de repente

Sophia de Mello Breyner Andresen

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa,ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr,navegar,morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

ESCUTO

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Sophia de Mello Breyner Andresen

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

Eugénio de Andrade

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