quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Conflito histórico

As negociações continuaram, agora abertamente; fiz espalhar por toda a parte que o próprio Trajano me encarregara disso antes de morrer. Risquei com um traço as conquistas perigosas: não somente a Mesopotâmia, onde não teríamos podido manter-nos, mas a Arménia, demasiado excêntrica e demasiado distante, que só conservei na categoria de Estado vassalo. Duas ou três dificuldades que teriam feito arrastar-se durante anos uma conferência de paz se os principais interessados tivessem vantagem em prolongá-la, foram aplanadas pela habilidade do mercador Opramoas que sabia fazer-se ouvir pelos Sátrapas.
Procurei comunicar às negociações aquele ardor que outros reservam para o campo de batalha; forcei a paz. O meu parceiro desejava-a, aliás, pelo menos tanto como eu próprio: os Partos só pensavam em reabrir as suas estradas de comércio entre a Índia e nós. Poucos meses depois da grande crise, tive a alegria de ver formar-se de novo na margem do Orontes a fila das caravanas; os óasis repovoavam-se de negociantes comentando as notícias à claridade das fogueiras onde preparavam a comida, carregando cada manhã com as suas mercadorias, para o transportar a países desconhecidos, um certo número de pensamentos, palavras e costumes bem nossos, que , pouco a pouco, se apoderariam do globo com mais segurança que as legiões em marcha. A circulação do ouro, a passagem das ideias, tão subtil como a do ar vital nas artérias, recomeçava no interior do grande corpo do mundo; o pulso da terra punha-se de novo a bater.
Por sua vez, a febre da rebelião descia. Tinha sido tão violenta, no Egipto, que fora necessário recrutar a toda a pressa milícias camponesas enquanto se esperava pelos nossos reforços. Encarreguei imediatamente o meu camarada Márcio Turbo de restabelecer ali toda a ordem, o que ele fez com sábia firmeza. Mas a ordem nas ruas só me dava meia satisfação; queria, se fosse possível , restabelecê-la nos espíritos, ou antes fazê-la reinar aí pela primeira vez. Uma estada de uma semana em Pelúsio foi inteiramente empregada em manter o fiel da balança entre Gregos e Judeus - eternos incompatíveis.
Seis intermináveis dias se passaram na dorna fervente do tribunal, protegida contra os calores do exterior por longos cortinados de ripas que estalavam com o vento. À noite enormes mosquitos zombiam em volta das luzes. Tentei demonstrar aos Gregos que não eram sempre eles os mais sábios e aos Judeus que não eram de modo algum os mais puros. As canções satíricas com que aqueles Helenos de baixa espécie importunavam os seus adversários não eram menos estúpidas que as grotescas imprecações das judiarias. Aquelas raças , que viviam há séculos porta com porta, nunca tinham tido a curiosidade de se conhecer nem a decência de se aceitar mutuamente.

No livro, Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar

1 comentário:

Asdrúbal de Sousa disse...

e um pouco mais atrás " A moral é uma convenção privada; a decência é uma questão pública; todo o desregramento excessivamente vísivel deu-me sempre a impressão de uma exibição de má qualidade".