Entrevista de Jerónimo de Sousa à revista Sábado (Setembro 2009)
Mas a crítica tem outra vertente, que não é pejorativa. Limita-se a dizer que, à medida que os trabalhadores vão sendo classe média , o PC perde espaço ou transforma-se...
Jerónimo de Sousa (JS)- Para nós é um problema histórico: as classes não terminam. As classes continuam a existir, continuam a estar na ordem do dia, naturalmente havendo evoluções e mutações , no mundo do trabalho... Desde há muito tempo, por exemplo , que transportávamos para as fileiras do partido os trabalhadores e os operários mais qualificados, que eram reconhecidos nos seus locais de trabalho como as pessoas mais sérias e, profissionalmente , mais destacadas . Portanto, ao contrário do que muita gente pensa , não fazemos contestação por contestação, nem com base nos menos instruídos...
E podemos também referir a proximidade do partido a grupos de intelectuais e universitários, que é caracteristica...
JS - Sim, certo, é isso. Intelectuais, quadros técnicos, profissionais, universitários...
Falando da ligação aos intelectuais. Esta conversa é na vossa sede de Lisboa, na Soeiro Pereira Gomes. Para quem não saiba , é o nome de um dos expoentes do nosso neorealismo. Você teve contacto com a obra dele? Ou teve de ter?
JS - A minha freguesia está perto do cenário onde Soeiro Pereira Gomes escreveu, por exemplo, os Esteiros. Sou de Santa Iria da Azóia e sempre sofri a influência , política, cultural e social , dessa corrente, podemos assim dizer, que vem de Santarém e Vila Franca. Comecei muito cedo na fábrica, tinha 14 anos. Havia ali uma geração de operários com uma grande dimensão cultural, pessoas interessadas , autodidactas. E lembro-me de que os primeiros livros que o "mestre", portanto o soldador, me perguntava se eu gostava de ler - e eu gostava mesmo de ler - eram, de facto, do Soeiro. Marcaram a minha juventude.
Você vem de uma família comunista ou é o primeiro?
JS - A minha família não era comunista.
Mas era politizada?
JS - Não. Quer dizer, tinha consciência da exploração, mas não era...
Mas você cresceu muito cedo no meio operário.
JS - Sim. Entrei para a fábrica aos 14 anos. E acho que tive a primeira aula de marxismo quando um operário mais velho me perguntou quanto ganhava."Dez escudos" disse-lhe. "Estás a ver a exploração? O teu trabalho vale 50 escudos, pelo menos."
Era a mais-valia.
JS - Era a mais-valia, o lucro do patrão...
Mas você disse, na Festa do Avante, que o PCP não é contra o lucro, mas apenas contra o lucro ilícito... Ora o lucro é a mais-valia...
JS - Acho que disse "lucro abissal"...
Disse ilícito.
JS - Ouça , nós não queremos empresas descapitalizadas , nem operários sem meios ou estatuto. O que não queremos é que o lucro cresça de uma forma obscena...
Quer dizer , sem regressar à sociedade, e beneficiar a mesma...
JS - Sim, quando o lucro é excessivo e significa apenas o triunfo do monopólio e do seu dono...
Olhando para as condições de trabalho, diria que os trabalhadores, nas fábricas que visita, possuem hoje uma condição mais humana?
JS - É tudo muito diferente. As grandes unidades operárias foram praticamente destruídas (falo da Quimigal, da Siderurgia Nacional, dos Mármores). Dezenas de milhares de operários, conscientes e avançados , assistiram ao desmantelamento do aparelho produtivo nacional. Entre o milhão e 200 mil trabalhadores de hoje, há uma tentativa de imposição de "valores" como o egoismo, o individualismo, o salve-se quem puder. Depois há a juventude , fustigada pelo desemprego e outros problemas sociais. É uma geração que já não teve de lutar pelos seus direitos e que assiste à sua sonegação, por exemplo no plano legislativo...
Está a dizer-me que o operariado se tornou mais macio, mais disciplinado...
JS - É uma classe operária que , em termos de evolução da própria consciencia, é, nalguns pontos, talvez mais despolitizada. Mas a gente de hoje cresce e aprende mais depressa. Na minha infância, eu sabia que, fazendo o ensino básico, independentemente do grau de inteligência e capacidade , tinha um destino implacável , que era trabalhar na fábrica.
O PCP foi criado noutro mundo, com outras realidades, há quase um século. Imagino que as mudanças os tenham ... mudado. Sobre a propriedade privada, por exemplo: discutem hoje a sua aceitação ou só reconhecem , verdadeiramente, a propriedade pessoal (a camisa , a casa, os bens de sobrevivência)...?
JS - Discutimos, sim. Nas bases do nosso programa definimos o que queremos. Claro que o objectivo histórico é a sociedade socialista...
Mas como sociedade onde todos são proprietários ou nenhum é?
JS - Nós temos um projecto de fundo, que olhamos como objectivo histórico, e que é a construção, como disse, de uma sociedade socialista. Mas , em termos programáticos , achamos que o instrumento para isso é o que chamamos "democracia avançada no limiar do século XXI": regime de liberdades indissociáveis (política, económica, cultural, social, e nacional) e uma democracia que deve permitir o pluralismo partidário e tem como valor intrínseco a liberdade. No plano económico, consideramos três sectores fundamentais: público, privado e cooperativo, obviamente com a valorização e o apoio às micro e médias empresas e o combate aos monopólios. No plano cultural, queremos a formação integral do indivíduo. E a afirmação também da soberania nacional, económica, de um Portugal independente. Queremos, nesse aspecto, a cooperação com todos os povos e países do mundo. Temos assim, simultaneamente , uma dimensão patriótica e internacionalista.
Quando me fala do vosso programa, não me parece surpreendente, nem muito diferente do elenco da Constituição da República Portuguesa de 76. O que é mais "avançado"? A Constituição ou o programa do PCP?
JS - Obviamente , o programa do Partido Comunista Português. Mais avançado , tendo em conta os nossos projectos de alteração, de revisão, de manutenção constitucionais e, fundamentalmente , numa coisa: na sua efectivação.
Solidariedade internacionalista... Durante muito tempo, o PCP era olhado como tendo um modelo internacional conhecido. Hoje você revê-se totalmente nalgumas experiência estrangeira? Há, por assim dizer, um modelo estrangeiro perfeito e aplicável em Portugal?
JS - Não, claro que não. Apreciamos várias formas de construção do socialismo, somos solidários com muitas experiências, mas temos também diferenças e divergências com elas. Não há modelos perfeitos lá fora ou que se apliquem aqui ao PCP. Por outro lado, deixe-me dizer que o partido sempre esteve embrenhado nas raízes nacionais, durante as duras lutas que travou. Talvez a chave do segredo do partido seja esta ligação profunda com o povo português e uma experiência própria de um grande colectivo partidário.
Unidos como os dedos da mão...
JS - Se quiser, Se quiser...
LN
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1 comentário:
falta a parte a amarelo...
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